Rotina

” Talvez uma quinta parte de sua mente estivesse ocupada nisso; o restante saltava por cima da frágil barreira de dia que se interpunha entre a manhã de segunda – feira e esse ameno momento e brincava com as coisas que a gente faz expontânea e normalmente no curso do dia.”
(Noite e dia – Virginia Woolf)

Era a mulher mais rotineira do mundo. Poucas vezes pensava em si mesma dessa maneira; aliás, eram poucas as vezes que pensava em si, somente em si sem interpôr outrem entre sua vida diária e a imaginária.
Por mais que houvesse passado por poucas e boas ao longo de apenas três meses, tinha a sensação de ainda não ter começado a andar num ano que já havia começado faz algum tempo. Não ter algo de útil nas mãos, lhe trazia a sensação de vagar por entre um espaço em branco, onde o tempo não passa e nem é contado.
Sentia passar todas as vinte e quatro horas do dia, dolorosamente, como se lhe pesassem às costas, como um fardo a carregar. Já tinha internalizado dentro de seu ouvido o tiquetaquear incessante do relógio.
Seus dias começavam com uma casa vazia e o barulho de obra, tão comuns em qualquer capital mundial. permanecia alguns minutos sentada na cama pensando no que teria para fazer. A cena se repetia, nada de urgente ou importante lhe ocorria.
Vestindo então um roupão azul de cetim, que lhe chegava até os calcanhares, para que os operários postados um pouco acima de sua janela não notassem a falta de roupas na parte inferior do corpo, caminhava até a cozinha arrastando os pés em chinelos cobertos como se fosse uma velha, ou como se não tivesse dormido a noite inteira. Enchia uma caneca com café e açucar e sentava-se no sofá, olhando para uma televisão desligada. Pensando. Pensando no que seria do dia de hoje, se seria outro em que ligaria o ponto morto e caminharia apenas por caminhar, empurrada para frente porque suas pegadas tinham se desfeito conforme a neve aumentava.
Esses momentos da manhã eram a única parte de seu dia que era capaz de se lembrar. Eram os únicos instantes em que parecia-lhe que estava realmente acordada. Em que seus rituais faziam-na ter com o que se ocupar.
Depois de escovar os dentes e da última olhada no espelho, tudo ia-se apagando gradualmente, com a chuva, como a neve.
Isso até os dias recomeçarem.

~ por M. em março 20, 2007.

Uma resposta to “Rotina”

  1. E o mais triste é que diversas vezes eu me pego vivendo assim.. no automático! É quase impossível não se deixar levar pela corrente.

    Mas sempre tem aquela realização de que a vida não é apenas uma coleção de minutos insignificantes. E pela décima vez no ano, você acorda pro primeiro dia da sua vida! E não é que esses dias realmente são maravilhosos?

    “Today is the first day of the rest of your life? Well, that’s true with every day except one: the day that you die.”

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