A minha e a dos demais

Quando Verônica entrara no ônibus, constarara com certa tristeza de que mesmo para aquela hora, cedo da tarde, ele já estava cheio em demasia.
Viu, entretanto, um banco vazio logo atrás da porta traseira do ônibus. Junto à janela sentava um rapaz moreno de mais ou menos vinte e três anos muito bem apanhado, como diria a sua avó, que se distraia ouvindo música a alto volume e contemplando a paisagem carioca.
Ao final da praia de Botafogo, aproveitando que a porta traseira abrira-se para despejar passageiros em uma parada, entraram sorrateiramente pela porta de trás, dois meninos de rua, sujos e maltrapilhos.
Um deles, o que aparentava ser o mais novo e também o mais safo, postou-se de imediato ao lado de Vê. Instantaneamente e cheia de um preconceito que divide com todos os demais residentes da zona sul do Rio de Janeiro e mais algumas outras, pensou: Pronto, lá vou eu ser assaltada pela terceira vez este ano.
Só então ela, o menino de rua e o rapaz ao seu lado junto com mais alguns passageiros da parte detrás do ônibus se deram conta de que o outro menino travava uma luta silenciosa – seu braço ficara preso na porta.
Mil conselhos começaram a surgir de todos os lados. O rapaz ao seu lado manifesta-se pela primeira vez. Entre um ponto e outro a impressão é de que passam intermináveis minutos. O menino não abre a boca uma só vez. Não pronuncia nenhuma palavra, nem mesmo um gemido escapa de seus lábios. Talvez fome seja maior que dor. Quem sabe não chega-se a um momento maior de abstração.
O mais novo então não conseguindo fazer força e por medo de que algo aconteça ao braço do companheiro, tira de dentro da camisa encardida um vidro que põe na boca. Começara a cheirar cola expondo-se ali a todos os passageiros.
Atendendo a gritos desesperados de senhoras de família, o motorista abre a porta finalmente. O rapaz do lado de Verônica, num rompante de benevolência lhes diz: agora vão.
Recolocou o fone no ouvido e continuou a contemplar. Enquanto ela procurava o homem bom e tentava entender de onde vinha a falta de palavras que exemplificavam a dor. Da fome, da sede e da falta de dignidade ou do torpor?
Qual é a razão da mudez?

~ por M. em novembro 23, 2007.

Uma resposta to “A minha e a dos demais”

  1. (Meu deus!, chocante.)

    O final do texto mexeu comigo, de verdade, fisicamente. E a pergunta vai ficar ecoando, misturada à cena de um braço preso e a mudez, e cola cheirada. Que estranha sensação me deu, que coisa esquisita.
    Nós com nossos preconceitos, com tantas distâncias… e outros distantes nem sei de quê exatamente, talvez de si mesmos, sequer se expressando, fugindo pelo torpor. Que situação…!

    Beijo.

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